Isabel Gomes Sarmento vive em Vila da Rua, Moimenta da Beira, e destaca-se entre os milhares de aniversariantes de hoje, 27 de dezembro de 2021: segundo o seu Bilhete de Identidade português faz 111 anos. Nasceu no ano da implantação da República, 1910. Pelos registos, será uma das mulheres mais idosas do País. É uma supercentenária!
De olhar meigo, parece ficar surpreendida com a chegada de desconhecidos a fazerem-lhe perguntas. Mas depressa o sorriso lhe ilumina o rosto sem idade. Em casa da filha mais nova e do genro, em Vila da Rua, concelho de Moimenta da Beira, numa casa solarenga tão antiga como a sua anciã, tudo o que já passou não se resume num texto. Isabel Sarmento é História viva. Mais de um século plasmado numa postura de quem já não teme nada.
Depois de longa existência, muito longa, parece ter perdoado a si mesma e ao Universo as armadilhas, as desgraças, os erros, as perdas, tudo devidamente engavetado no passado, como só o tempo consegue fazer. O seu semblante é, por isso, calmo, um gracejo aqui e ali, e, de quando em vez, um sorrisinho surge no canto da boca, pois a centenária ouve mal, mas percebe-se que está atenta.
Enquanto tudo no mundo e no País acontecia, desde pandemias, guerras, mudanças de regimes, catástrofes climáticas de toda a ordem, acontecimentos que a História documenta e que assinala até hoje, Isabel Sarmento acompanhou-lhe o ritmo e os danos colaterais, apanhada pela dureza dos tempos.
Atualmente, reveza-se entre as casas das filhas Otília Loureiro e a de Gorete, em Amarante. A outra filha, Maria Cândida, a mais velha, está no Brasil. Mas Isabel Sarmento não dá muito trabalho. Ainda há bem pouco tempo adorava pizzas, lasanhas, comidas com natas. Boa boca. Peixe é que não. E gostar de ser líder, sempre. Café é ainda uma perdição e ainda bebe um vinho do Porto se não for muito forte. Segredos para a longevidade? Todos gostavam de saber. Teimosia? Sorte? Genes? Foi duas vezes ao médico, uma das quais por uma queda recente que resultou numa anca partida.
Sempre muito devota de Nossa Senhora de Fátima, curiosamente nasce antes de se darem as aparições. Só que esta devoção, junta com a sua longevidade, levou-a a ver muitos dos seus partirem antes do que ela, pelo que sempre que a filha Otília ia ao cemitério levava uma série de velas para distribuir pelos amigos e familiares.
Filha de Ayres Gomes Sarmento e de Maria Cândida Gomes, emigrados no Acre, no noroeste da Floresta Amazónica, onde nasceu o irmão Francisco, a família chegou a prosperar. O pai, natural de Prados, também concelho de Moimenta da Beira, fez-se carpinteiro no Brasil, trabalhava no Cruzeiro do Sul, a cidade mais turística das redondezas e o que dizem os filhos é que chegou a ter uma grande casa, com padeiro e pescador por sua conta. Mas se houve tal prosperidade, não se sabe quem beneficiou dela.
Ayres morreu com problemas pulmonares, quando Isabel tinha sete anos. Algum tempo depois, a mãe Cândida regressou a Vide, com Isabel e Francisco, onde os esperavam mais três filhos que nunca chegaram a emigrar, Manuel, Carlos e Luís, que permaneceram sempre em casa de uma tia.
Isabel olha-nos atenta, de vez em quando a filha Otília Loureiro vai tirar dúvidas com ela, ao que responde quando lhe apetece. Outras, franze o sobrolho e diz: “Ui, já não me lembro!”. O genro, José Loureiro, vai ajudando nos pormenores possíveis. A sogra está de olhos na televisão, sua grande companhia de sempre, mas observa tudo amiúde, sabe que conversam sobre ela, está lúcida e é expressiva, na sua cadeira de rodas, onde está a maior parte do tempo desde a queda.
Isabel chegou a frequentar a escola, o suficiente para aprender a ler e escrever, depois não prosseguiu, que os filhos eram precisos para ajudar. Aprendeu a costurar, a fazer croché, as lides domésticas, gostava de dançar, de conversar, tinha bom coração, porém, ninguém a torcia. No leva e traz do quotidiano conheceu o homem da sua vida: António Gomes Cardia, com quem teve cinco filhos: quatro raparigas e um rapaz.
Ambos estavam unidos para a eternidade, até na arte com que os criaram: ela era costureira, ele era alfaiate. Faziam roupa e iam de feira em feira, numa carroça, onde trocavam roupas por géneros. Também trabalhavam por encomenda para outras ocasiões mais solenes. Já mais tarde, António foi pedreiro, com um tio e, depois, com um sobrinho. As tristezas foram pautando o percurso da família. Dos cinco filhos, dois morreram precocemente: Ayres, a quem foi posto o nome do pai, com quatro anos, e Ester com 18, com uma paralisia que se supôs ser causada por um AVC. Um desgosto grande.
“A minha mãe sofreu muito com a morte da Ester, a minha irmã parecia que tinha um dom, pois ela soube o que lhe ia acontecer. Previu a sua morte”, conta Otília Loureiro, a mais nova das filhas. Com 73 anos, morre António, o seu companheiro de sempre. As filhas Otília e Gorete optam por levá-la para a Suíça, mas a mãe não se adapta. Quer a sua casa, as amigas, o seu canto, fazer o luto onde está a campa do marido. Em Vide, recebe visitas da prima, da comadre, da sobrinha, que amigas nunca lhe faltaram, faz paninhos para A, B e C, e quando vê televisão é como se não existisse mais nada.
De tal modo era o "vício" que quando a família a visitava, vinda da Suíça, interrompia as refeições e ia ver os seus programas favoritos, para espanto dos que ficavam na mesa e que agora se riem disso. Só quando Otília e, mais tarde, Gorete e o marido Amândio Dinis regressam da Suíça é que se dá a saída de Isabel de sua casa. O seu cantinho passou a deixar de ser seguro. “A minha mãe começou a ter medo e, às vezes, até ligava à noite a dizer que ouvia barulhos”. Foi a partir daí que as filhas passaram a recebê-la à vez.
A teimosia de outros tempos foi amenizando. Porém, há situações em que resmunga sempre. Nunca gostou, por exemplo, de andar de carro. “Há mais carros do que gente! Há mais casas do que gente!”, repetia. Clássicos de Isabel Sarmento. Na casa dela, mandava ela. E na dos filhos também. Isabel adora o seu legado familiar. Entre netos e bisnetos são 16 ao todo, e uma tetraneta, uma menina. O futuro deixado por esta supercentenária. Parabéns, D. Isabel!