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Orlando Neves: O escritor imparável que quase ficou por Moimenta (parte II)

17 Junho 2021

Depois de uma vida profissional dividida entre Porto e Lisboa, Orlando Neves, o poeta, romancista, guionista, encenador, crítico de cinema e televisão, jornalista, editor, coordenador de revistas e colaborador de outras tantas, chegou à década de 90, dono da sua liberdade. Durante o seu percurso, saiu de cargos importantes, sempre que as instituições lhe punham à frente o travo amargo a ligações ao regime salazarista, sem medo, sem alaridos.

Filho de dois beirões, a mãe, Ana Loureiro, moimentense, e o pai Isíquio Neves, de Escurquela, Sernancelhe, foi nascer a Portalegre, já que o patriarca pertencia à Guarda Nacional ─ posteriormente ligado ao Trânsito ─ e esteve destacado em várias cidades de Norte a Sul, incluindo em Moimenta da Beira, onde conheceu a mulher, apesar de esta morar na altura em Lisboa. Numa das suas visitas à terra, Ana conheceu-o num baile e foi um primeiro encontro que os terá marcado, pois viria a dar em amor e casamento.

Como já referimos na primeira parte, de quatro filhos, Orlando foi o último a nascer, mas os mais velhos não passaram da infância. Só Palmira Santos, a terceira e única menina, ultrapassou as fragilidades dos primeiros anos. Um dos hábitos de família que escolheu outra cidade para morar era vir passar férias a Moimenta. O mais novo vinha às vezes. Tinham uma casa na rua do Correio Velho ─ Luís Veiga Leitão ─ e uma Quinta de que eram proprietários. Orlando estudou em várias cidades, cursou direito, mas nunca quis exercer.

Enquanto o pai avançava para a reforma e se dedicava à compra e venda de casas, com o seu espírito empreendedor, o benjamim da família não tinha mãos a medir. Diz-se que na década de 90 se dedicou exclusivamente aos livros mas a época mais fértil da sua escrita foi sempre, a ter em conta os títulos, os géneros e os anos em que escreveu. E não constam aqui todos. De poesia: Sopapo para a destruição da felicidade (1959); O silêncio na cidade (1963); Canção para o jovem país (1963); Trovas da infância na aldeia (1987); Regresso de Orfeu (1989); Odes de Mitilene (1990); Lamentação em Cáucaso (1990); Nocturnidade (1999); Diário de Estar e Ser (2000); Clamores (2001), entre tantos outros. Os de ficção: Pélias ou a Aventura da Argo (1961), contos; A Condecoração (1984), contos; Morte em Campo de Ourique (1987), romance; Morta em Vila Viçosa (1991), romance; Rua do Sol (1992), contos; Histórias de Espanto e Exemplo (1993), contos; Memórias de um rufia lisboês (1994), romance; Fabulário (1995), fábulas; Torrebriga – Cenas da Vida no Interior (1999), romance. Os de Teatro, como A Execução, seguida de seis peças em um ato (1966); Humor Próprio, com colaboração (1975); Crisântemos e Malmequeres (1987), não publicado, mas representado pela Companhia de Teatro Reportório, no Trindade; 30 Anos de Teatro (1993). Os livros infantis: O Mundo dos Porquês, com colaboração (1969); Os Brinquedos do Tozé fizeram Banzé, teatro (1978); Aventuras de Animais e Outros que Tais, teatro, com colaboração (1982); Histórias da Ana Alexandra, contos (1988); Aventuras do Gato Chalupa, contos (1988); O Tio Maravilhas, teatro (1991); O mosquito zzzz.... Zzzz, teatro (1992).

Orlando Neves publicou também crónicas sobre Lisboa e um surpreendente número de livros sobre a origem dos nomes, dos palavrões, livros sobre expressões bíblicas, frases feitas, entre outros, revelando a sua curiosidade sobre a cultura popular. Fez parte também de várias coletâneas e antologias. Em suma, foi um homem de tal forma embrenhado na sua vida profissional que, diz a família, casou, mas nunca chegou a ter filhos. Quando lhe surgiu a ideia de organizar os Serões da Beira numa terra que lhe batia no peito, fê-lo com entusiasmo. A terra amada dos seus pais, do seu amigo Aquilino Ribeiro.

Através da Associação Cultural Património XXI, os primeiros Serões da Beira, dedicados à temática dos “Os Descobrimentos e a Poesia” decorreram de 30 de Outubro a 4 de Novembro de 1990, no Externato Infante D. Henrique, com os devidos patrocínios da autarquia local e da Associação Cultural e Recreativa de Moimenta da Beira. O programa obedecia a uma inscrição de 13$50 (visitas, refeições e pernoitas incluídas) e constava de vários painéis, recitais de poesia, visitas, comunicações (previamente enviadas), assim como o regulamento para o prémio Luís Veiga Leitão, publicado no jornal Correio Beirão, enviado depois aos inscritos.

Realizaram-se três Serões da Beira, todos diferentes, com espetáculos ou Feiras do Livro. Por estes encontros passaram nomes como Manuel Ferreira, um dos maiores estudiosos da literatura africana, que veio a dois serões; o poeta Álvaro Mendes, António Rebordão Navarro, José do Carmo Francisco, contista, J. O Travanca Rêgo, poeta de renome, entre muitos outros que, durante estes períodos enchiam a vila de um ambiente diferente e que muitos moimentenses aproveitavam para conhecer através das páginas do Correio Beirão, pois os eventos eram acompanhados pelo jornal, que tinha na redação o Ricardo Bordado e o Jorge Plácido.

O nome de Orlando Neves já não era, de todo, desconhecido na terra. Já não bastava o facto de ter cá familiares, de a família ter vindo cá regularmente enquanto lhe foi possível, e de o conhecerem, por isso, desde pequeno, entre 1991 e 1993, a convite do diretor do Correio Beirão, Rui Bondoso, Orlando Neves foi também responsável por um suplemento cultural mensal, designado de NAVE, onde escrevia sobre o que quisesse, desde grandes autores estrangeiros, a crónicas temáticas, por vezes trechos dos seus próprios livros, reflexões ou críticas sobre a Cultura. Um elogio ou uma pedrada no charco, consoante a atualidade cultural o inspirava.

A dada altura, a sua ligação a Moimenta da Beira tinha tudo para se tornar assídua, com o projeto quase certo da criação do Instituto Superior Douro Sul, que teria sede no Externato Infante D.Henrique e delegações em Lamego e Lousada, do qual Orlando Neves seria o diretor. Com tudo aparentemente orientado, Neves aceita mais este desafio, muda-se para a casa da rua do Correio Velho e ali prepara aquele que viria a ser o ISDUL. Conta-se que da sua biblioteca chegou a mandar vir um carregamento de livros, que achava úteis para o efeito.

Mas ao fim de alguns meses, algo parecia não estar a correr como o expectável. Faltavam respostas. Andamento. Orlando Neves foi embora. Retornou a Lisboa e continuou a escrever. Talvez os amigos que se envolveram com ele neste projeto saibam se partiu amargurado. Mas a sua personalidade de sacudir as agruras e avançar já lhe vinha de longe e os prémios que ia recebendo não lhe eram decerto indiferentes. Em 1998 recebe o Prémio Cidade Almada Ficção com o romance: Torrebriga: Cenas da Vida no Interior.

Na bagagem já somava dois prémios, em 1989, o Florbela Espanca, em poesia, com o Regresso de Orfeu e logo depois o prémio de ficção João Penha com o original inédito Um Corte no Tempo, uma obra de contos de temática lisboeta, escolhido por um júri formado por José Augusto Seabra, Maria Ondina Braga, Vasco Branco e António Rebordão Navarro. Um prémio atribuído pelo Lions Clube de Braga que homenageia pela primeira vez João Penha, poeta radicado em Braga, contemporâneo de Eça, amigo de Antero de Quental e Guerra Junqueiro.

Orlando Neves escreveu sem parar. Quando ficou doente, voltou para o Porto para ficar mais perto da família. A sobrinha, filha de Palmira Santos (ainda viva e com boa memória), que herdou o nome da avó, Ana Loureiro, recorda-o como um homem muito correto, que nunca queria saber de intrigas ou da vida dos outros. Por mais moderno que o tio pudesse parecer, mais desligado de valores tradicionais, Orlando Neves era um homem dedicado à família, que a via como uma filha e que era para ela um pilar imprescindível, um conselheiro, que a comprometeu com os livros e lhe abriu horizontes, como um pai faria. A morte dele foi um duro golpe.

Orlando Neves, considerado um dos mais proeminentes poetas do séc XX, morreu em Janeiro de 2005, na Senhora da Hora. Os seus dois últimos livros datam de 2001. Uma vida preenchida ao segundo. Um homem que nasceu para deixar obra.


Só no Pensamento Volta o Mundo

Só no pensamento volta o
mundo. Ao ruído da voz
apenas aspiro — que a alma
é o ser mais que a dor ou o
verde cinza do halo das
árvores na manhã íntima das
cores diurnas. Temi os
deuses pelo coração dos
homens, ao homem temo
que por metade vive o medo
divino. Resta, no espasmo
da terra, a mágoa seca, a
ruína da água, a traição do
nada neste corpo de cera,
coroado do silêncio ferido.
Se não de amor é o dia
aberto quando as vísceras
róseas ouvem a respiração
do fogo derramado eros.
Que a estreita vida diz na
tão pouco breve humilde
erva a tão febril brisa, cio de
matinal búzio ou rouca
flauta. Então me ergo e
ouso, vaso do vento, clamar
a queda. Ó esta humana e
divina pobreza de querer
sem fulgor, de tudo poder
sem desejo, alheio ou meu!
O que do futuro ignoro é
maior que o tempo que vivo,
é palavra de cega língua, em
mim calada por jamais lida.
A vida é a voz, a que tece e
resgata, a que rende e cerca
— ardil da névoa, objecto
oco da memória.
In Lamentação em Cáucaso


Fontes:
Testemunhos familiares
Testemunhos locais
Obra de Orlando Neves
Biografias do escritor

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