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Orlando Neves: O génio que não fugia dos desafios (parte I)

05 Junho 2021

Orlando Neves foi o último de quatro filhos e o registado mais a Sul de Portugal, em Portalegre, corria Setembro de 1935. Filho de Isíquio Neves, de Escurquela, Sernancelhe, e de Ana Loureiro, — que morava em Lisboa, mas tinha mãe e outros familiares em Moimenta da Beira — o benjamim da família veio provar que no amor e no trabalho não há distâncias, nem as coisas que parecem imutáveis o são. Dos quatro irmãos, apenas vingou com saúde a terceira e única rapariga, Palmira Loureiro, e a vida seguiu, dorida no coração dos pais, pois os dois mais velhos não passaram da infância.

Palmira Loureiro nasceu em Lisboa e antes de resumirmos esta vida contada a segundos, convém explicar como se cruzaram Isíquio e Ana Loureiro. É que Isíquio foi, durante toda a vida, Guarda Nacional e, depois, Polícia de Trânsito e, por uns anos, esteve destacado em Moimenta da Beira. Ana Loureiro, numa das visitas que fez à vila, conheceu-o num baile e os ditames do amor lá trabalharam das suas formas misteriosas.

A partir daí, de destacamento em destacamento por várias cidades de Norte a Sul, casaram, constituíram família e acabaram por assentar em Lisboa, mas sem nunca perderem a ligação a Escurquela e a Moimenta, onde passou a ser costume virem passar férias numa Quinta de sua propriedade ou numa casa na rua do Correio Velho. A dada altura, teriam também casa no Porto.

Já Orlando começou a sua estafada jornada estudantil, como um saltimbanco: fez os estudos primários em Lisboa e nas Caldas da Rainha, os secundários em Lisboa (Liceu Gil Vicente), no Porto (D. Manuel II), Guimarães (Liceu Nacional de Guimarães) e, de novo, regressando ao Porto (Liceu D. Manuel II). Entrou diretamente na Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa, tendo-se licenciado em Junho de 1958, com 22 anos. Começa aqui a pulsar a sua veia política e cultural, cujo currículo não poderíamos de todo mostrar na totalidade, tal a sua extensão.

Na Faculdade de Direito, foi diretor cultural da Associação Académica, tendo colaborado na criação do Grupo Cénico da Faculdade. No ano letivo de 1957-1958 foi eleito Presidente da Associação Académica, intervindo, diretamente, como elemento da coordenadora RIA (Reunião Inter-Associações) nas contestações ao célebre decreto 40.900, o rastilho das revoltas estudantis que se seguiram.

Chegou a ser durante um período subdelegado de procurador da República, mas abandonou o cargo para se candidatar à advocacia, que também não exerceu pois soube desde logo não ser aquele o seu caminho. E qual seria esse caminho? Tudo o que tivesse a ver com escrita, rádio, teatro, criação, poesia. Entrou para os quadros dos Emissores do Norte Reunidos, onde foi locutor, produtor e autor de programas radiofónicos de natureza geral e cultural.

Conseguiu fazer entrar na Emissora programas de teatro radiofónico, pela primeira vez, peças de autores proibidos pela Censura, a exemplo, em estreia, em Portugal, Brecht e a sua peça em 1 ato, “Aquele que diz sim e aquele que diz não”. No mesmo período colaborou, com assiduidade, na Rádio Clube Português, delegação do Norte.

Não foi apenas esta a única das suas destemidas afrontas contra o regime. Já no Porto, como diretor dos serviços de Publicidade e Relações Públicas da fábrica EFACEC, sendo igualmente diretor da ADEFA (Associação do Pessoal da EFACEC), promoveu a ida às instalações da fábrica dos escritores Ferreira de Castro e Aquilino Ribeiro (seu amigo pessoal). Destemido, fez também com que o Teatro Experimental do Porto se deslocasse às instalações e, no meio das máquinas, em palco improvisado, representou duas peças de teatro de Almeida Garrett. Atuações estas que acabaram por ser suspensas devido a pressões políticas.

Com o Teatro Experimental do Porto (TEP) teve uma intensa relação. Convidado pelo professor Noronha Feio, subiu rápido e, nos dois anos seguintes, foi eleito Presidente. Revitalizou a companhia, após a saída de António Pedro. Foi, então, que a seu convite, Carlos Avilez, se estreou, profissionalmente, como encenador e, mais tarde, Rui de Carvalho, que convidou para ator e diretor da Companhia, onde se manteve por uma ou duas épocas. Contratou para o elenco de TEP, atores de renome, deu oportunidades a encenadores e trouxe de grupos de amadores e universitários, para o profissionalismo, outros tantos nomes.

Com 30 anos, regressa à capital, entra para o Laboratório Nacional de Engenharia Civil, como diretor de publicações e documentalista, mas ao ser convidado para entrar no quadro os seus princípios falam mais alto: recusa-se a assinar a declaração de não- prática contra as políticas do Estado Novo. Sai do LNEC e começa a sua carreira, de entre os tantos trabalhos de onde saiu por iniciativa própria, como jornalista no jornal República, na altura dirigido por Carvalhão Duarte e Alfredo Guisado.

Ali faz um pouco de tudo. Especializa-se em temáticas culturais e, durante muito tempo, é crítico de teatro e televisão, coordena suplementos como Jornal de Crítica, Um Certo Humor, o Assunto é Teatro (o único do género em Portugal) e República Juvenil. Fazia também parte da revista Vida Mundial, onde escrevia crónicas, dirigia entrevistas e era também crítico de teatro e televisão.

Uma vez mais por questões políticas, ele e uma dezena de jornalistas saíram da redação, por ocasião das eleições para a Assembleia Nacional, em 1969, quando a direção da Revista tomou a decisão de colocar a publicação ao serviço da União Nacional. Orlando Neves era já conhecido no meio, assim como a versatilidade do seu talento. Decide criar a Livraria Opinião, um espaço original e de sucesso para onde convergem escritores e de onde nasce a livraria Opinião SARL, que, pela enorme afluência e a característica da oferta atrai problemas... com a polícia política.

Mas Orlando resiste sem medo. Faz dezenas de traduções, sobretudo de peças de teatro, emitidas radiofonicamente ou representadas. No início da década de 70 o Círculo de Leitores deita-lhe a mão e convida-o para ser o responsável da sua revista de livros. Pouco depois, a direção alemã-espanhola do Círculo convida-o para diretor literário, o que o leva a abandonar a redação da República e a Livraria Opinião. No Círculo de Leitores passa a orientar a programação de livros e discos.

A partir de 1973 acumula o cargo de diretor literário e musical com o que já fazia. Em Julho de 1974 foi despedido, sem justa causa, pela administração alemã, por ter, após o 25 de Abril, colaborado e presidido à Assembleia Geral de Trabalhadores que decretou, em Maio de 1974, uma greve de reivindicações salariais.

Segue-se a direção da Portugália Editora, da qual acaba por sair, por uma estranha viragem editorial. Saída essa, tornada pública pela comunicação social, que foi apoiada por vários escritores, entre os quais José Ferreira, autor da própria Portugália. Imparável, junta-se a um grupo de escritores e cria a Cooperativa Editorial Diabril, em Fevereiro de 1975 e convida José Gomes Ferreira a fazer parte, publicando várias reedições e novos títulos seus.

Foi Relações Públicas da Companhia Nacional de Teatro, dirigida por Carlos Wallenstein, no S. Luiz, em Lisboa; volta a ser jornalista freelancer, colaborando com o Expresso, Diário de Notícias, entre outros.

O programa cultural semanal Manta de Retalhos, na RTP-1, que apresenta, em 1980, é considerado unanimemente pela crítica da época como o melhor programa cultural de televisão feito até à data. Na mesma altura, foi co-autor da primeira série do programa radiofónico Pão com manteiga. O seu vasto currículo inclui ainda centenas de ligações com revistas que dirigiu ou onde escreveu e cargos por onde foi passando.

Encenou várias peças que acabaram premiadas, mas na década de 90, quando se deu a remodelação do Diário de Notícias optou por dedicar-se de uma vez por todas à escrita. Escreveu centenas de livros de poesia, infantis, guiões, romances. Curiosamente foi nesta década que as suas raízes o chamaram à terra dos pais. E fê-lo com dedicação, habituado a não negar desafios. Na II parte contaremos como um homem urbano se deixou cativar pela enganadora pacatez de uma vila, provando, novamente, que as distâncias, por vezes, não são empecilhos.

 

De “REGRESSO DE ORFEU”

Contemplai o homem chamado orfeu
que no escuro campo queimou a luz
e amanhece de novo repetido
na lavra da cor, à mesa rasa.
Aturdido na morte, chorou a perda
do frágil coração dos homens,
no halo das águas. E, esgotado,
ao frio relâmpago dos espelhos,
pelo sulco do risco das aves nos céus
reconhece o estranho trânsito da luz.
Contemplai o homem que o nome perdeu
e a si se devora, fragmento de papel,
na chama inquieta de uma lua negra,
perfeito arco de pó em cada momento
eco do inútil, boca do efémero.

Ó se o meu clamor às altas serras,
às verdes estrelas tanto subisse,
ó se o meu clamor nos baixos vales,
à raiz das pedras aí se fundasse,
ó se o meu clamor, aqui agreste,
além temente, singelo fosse,
ó se o meu clamor, jamais débil,
sempre o vento o acolhesse,
ó se o meu clamor de rude grito,
por todas as partes se repartisse,
ó se o meu clamor de fogo errante,
neste ser terra a alma acendesse,

mas tudo o que repousa em si se move
e nada permanece como parece.

Fontes:
Excertos de textos sobre Orlando Neves
Testemunhos familiares

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