Passar para o Conteúdo Principal

O enigma à volta da morte (parte II)

20 Janeiro 2021

Após a chocante escrita de “Angelo”, o romance contra o celibato sacerdotal, Francisco Moura Seco viveu num impasse que só ele poderia explicar, iniciando e desistindo da literatura e da poesia, como se não confiasse já na sua prosa. Ou outras razões o martirizavam. No entanto, escreveu, depois disso “Leonor, a Religiosa”, cuja temática ou qualidade não é mencionada por nenhum dos seus pares em nenhum testemunho escrito. Nem para criticar ou elogiar.

No livro de M. Gonçalves da Costa, sobre o Seminário e os Seminaristas de Lamego, que mencionamos na parte I, há críticas directas a “Angelo”, o que não surpreende, outras tantas a um segundo livro, “A Vida de Jesus o Cristo”, que não passou de dois ou três capítulos e o prefácio. Na altura, por mão do Monsenhor Aníbal Rebelo Bastos, seu amigo, o original ficou guardado na Sé de Lamego no arquivo do próprio autor.

Há para além disso toda uma apreciação pejorativa à tentativa poética que o padre da Vila da Rua nunca concluiu. Um dos poemas, que se destinaria a uma compilação, composto por cinco oitavas saiu impresso no nº 25 da “Miscelânea Poética”, Porto, 5 de Junho de 1851. Houve uma outra poesia “intencionalmente autobiográfica”, refere M. Gonçalves, intitulada “Descri”, publicada no bisemanário “O Lamecense”, em 1856. Sobre “Leonor, a Religiosa”, M. Gonçalves não faz uma única referência. Não encontramos, aliás, nenhum resumo em lado algum sobre esta obra.

Este fel de alguns contra um simples reitor do interior durou anos e anos, muito após a sua morte. Basta pensar que este livro data de 1990. “Angelo” foi escrito em 1864, tinha Moura Seco 34 anos e uma boa dose de coragem, pois sabia que, naquela época e ainda jovem, ia enfrentar consequências vindas de uma Igreja fechada, tão fechada que, até hoje, se mantém igual em certos dogmas.

Ainda assim, a dada altura este ataque direto parece ter sido esquecido. Moura Seco continuou a fascinar com os seus dotes de orador na sua paróquia - onde carinhosamente o chamavam Padre Muna Seco – e também em Lamego. Nunca deixou de atrair pessoas para o ouvir.

Dos inúmeros discursos marcantes que fez, de tão importante, apenas um ficou registado em papel, ainda hoje consultável: “Discurso Fúnebre Pronunciado nas Exéquias de D. Pedro IV na Real Capela da Nossa Senhora da Lapa, no Porto”, datado de 25 de Setembro de 1876 e guardado na Biblioteca Nacional em “mau estado”. Curiosamente, nas pesquisas online sobre as outras duas obras na Biblioteca Nacional, nada aparece. Ou podem não constar no arquivo digital.

Haverá, naturalmente, um amigo que as tenha guardado. E um ou mais inimigos que nunca tenham esquecido, afinal, o seu ato irreverente. No mesmo púlpito onde em Agosto de 1858 proferiu o seu primeiro sermão na Igreja de Almacave, na festa do Santíssimo, Francisco Moura Seco preparava-se para pregar, décadas depois, numa outra solenidade, em Janeiro de 1889, esticou o braço para falar com a sua habitual eloquência, mas só terá dito duas palavras. Trinta e um anos depois do seu primeiro discurso, tombou, inerte.

Não foi uma frase qualquer com que se calou a sua vida precocemente. “Raio de Luz”, testemunharam muitos. Terão sido as suas últimas palavras, perante uma comunidade incrédula. O final perfeito para uma vida de palavras. Terá lembrado Jerónima do Sacramento, a mãe que possibilitou a sua carta paroquial, oferecendo-lhe o pouco que tinha como dote? Terá pensado na vida inconstante que vivera?

Caiu sem rede o homem a quem Aquilino Ribeiro admirava os dons literários e oratórios, as palavras sagradas e profanas, o ser com laivos de aramista. Foram inevitáveis as suspeitas nunca desfeitas sobre a sua morte.

J. Correia Duarte, no seu livro História da Sé de Lamego, chamou-lhes “más suspeitas”. Algum fundamentalista que esperou o momento oportuno para a vingança? O enigma permaneceu. Permanecerá para sempre. Morte súbita? Não houve nada que o esclarecesse. Logo na manhã seguinte, depois das cerimónias fúnebres, mais de três mil pessoas, admiradores e crentes, acompanharam o corpo de Francisco Moura Seco até ao cemitério de Lamego. Tinha apenas 59 anos.

Não se lhe conhece nenhuma homenagem pública, além da memória dos que contam a sua história, desde investigadores e historiadores de várias universidades a gente de Vila da Rua, do concelho de Moimenta da Beira, de Lamego, até à Igreja em geral, admirando-o ou o contrário. Em 2001, o historiador Artur Valente da Cruz integrou-o numa lista como uma das figuras mais proeminentes do distrito de Viseu. Na sua curta e intensa vida, o Padre Muna Seco tê-lo-á sido. Proeminente. Um raio de luz.
(fim)

Fontes:
Bento da Guia A. (As Vinte Freguesias de Moimenta da Beira)
Correia Duarte, J. (História da Igreja de Lamego)
Gonçalves da Costa, M. (Seminário e Seminaristas de Lamego, Monografia Histórica)
Occidente - Revista ilustrada de Portugal e do Estrangeiro