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A palavra o celebrizou, a palavra o condenou? - (parte I)

08 Janeiro 2021

Há vidas que não podemos deixar de contar e sendo esta digna de ser lida, por ser impressionante e envolta em algum mistério, tomamos a opção de voltar um pouco atrás - uma vez que a rubrica “Iluminadores de Palavras” obedece a uma ordem cronológica - para partilhar consigo a vida de Francisco de Moura Seco.

Muitos devem ter falado ouvido falar neste padre, cuja existência foi mencionada de gerações em gerações e ainda hoje faz eco em escritos de historiadores e investigadores que relembram a sua genialidade, a sua coragem, o enigma que envolve o seu fim.

Francisco de Moura Seco foi toda a sua vida pároco de Vila da Rua, Moimenta da Beira, escritor, estudioso. Esta rubrica é dedicada aos poetas com raízes ou ligações de relevo às Terras do Demo. Foi este pároco um poeta? Não chegou a terminar o seu livro de poesia. No entanto, há quem a declame de improviso ou de papel na mão.

Moura Seco foi considerado um dos mais brilhantes oradores e celebrizou-se por isso. O seu nome correu o País. Elevou a palavra ao sentido do belo. Foi motivo de inspiração. Foi um mestre da palavra. Mas o encanto das suas palavras não lhe trouxe só elogios. Podemos dizer que a palavra com que iluminava pode ter sido a sua maior sombra.

Nascido em Almacave, Lamego, em 1830, estudou no Seminário local e, considerado um “talento superior”, poderia ter ser seguido, como era sua intenção, os estudos em Coimbra e aí obter um bacharel. Um dos seus amigos, por ser filho de pais abastados, assim o fez, mas Moura Seco, por carência de meios e falta de um mecenas, viu-se obrigado a aceitar uma carta de pároco local.

Num livro escrito anos depois da sua morte, Pedro Augusto Ferreira, professor no Seminário de Lamego e responsável pelas últimas aulas de preparação para as ordens de presbíteros, chamou-lhe, por isso, compassivamente de “o infeliz”, também pelo seu início de vida, logo desde o batismo, no qual foi registado como filho de pais incógnitos, mesmo depois de, anos passados, vir a ser conhecida a identidade de ambos.

Para seguir o estado clerical precisou de uma autorização real e foi a mãe quem, através dos dotes que possuía em Vide, Vila da Rua, Moimenta da Beira, que, sozinha, lhe conseguiu o dote para o património da ordenação. Em 1859 foi apresentado por carta régia e um ano depois rumou à paróquia de Vila da Rua como reitor perpétuo, Moimenta da Beira, de onde poucas vezes saiu.

De todos os géneros literários, aquele que o fazia arrastar multidões era reconhecidamente a oratória, sobretudo quando comparecia em grandes solenidades, em Almacave. Em 1864, no entanto, com 30 anos, num assomo de coragem, iniciou-se na literatura de ficção com o livro “Angelo”, a obra que escandalizou a Igreja da época, tendo passado um ano depois da sua edição até a Congregação do Index a ter remetido para o Índice dos Livros Proibidos. Após esta condenação, todos os exemplares desapareceram das bibliotecas. E não só. Ninguém sabe quem terá um exemplar, além da própria Igreja.

Neste livro, Moura Seco defende o fim do celibato sacerdotal, numa história romanceada supostamente passada em Lamego. Na sua monografia histórica editada em 1990, “Seminário e Seminaristas de Lamego”, M. Gonçalves da Costa refere, não sem algum agrume, que “Angelo” é “claramente decalcado no Eurico, de Alexandre Herculano. E que (...) a leitura do texto estava juncado de situações exageradamente trágicas e demasiadamente artificiais para convencerem quem quer que seja”.

Francisco Moura Seco ainda fez uma segunda tentativa com “A vida de Jesus o Cristo”, mas não terá ido além do prefácio e dos dois primeiros capítulos”. Apesar de tudo, Seco era um homem das letras e iniciou um livro de poemas que também nunca terminou. Terão sido tempos complicados para o reitor. Ainda assim, a sua figura atraiu Aquilino Ribeiro que, de acordo com Gonçalves, se refere a ele na sua obra “Andam Faunos nos Bosques” como “um homem de invejáveis letras, tanto sagradas como profanas, com laivos de aramista”.

Nesta fase da sua vida, pode dizer-se que o reitor de Vila da Rua, admirado por tantos, cabia perfeitamente na descrição de Aquilino – equilibrista que anda no arame-, entre os fiéis que o seguiam só para o ouvir, outros mais fundamentalistas a absorver o conteúdo herege de “Angelo”, e uma Igreja fechada e obsoleta com algumas alas mais furiosas do que outras pela abordagem de um tema que ainda hoje não saiu do debate

O que se seguiu depois deste embate frontal com a Igreja? Francisco Moura Seco, brilhante, conhecido pelo seu dom, embora um homem de origens simples, perderia a força, os projetos, ainda tão jovem? Contar-lhe-emos na parte II. Porque vale a pena.
(continua e acaba na próxima quinzena)

Fontes:
M. Gonçalves da Costa (Seminário e Seminaristas de Lamego, Monografia Histórica)
Bento da Guia (As Vinte Freguesias de Moimenta da Beira)
Occidente- Revista ilustrada de Portugal e do Estrangeiro