Passar para o Conteúdo Principal

Um professor e um escritor à frente do seu tempo - Um Homem Sem Medo (parte II)

26 Dezembro 2020

Décadas de 50 a 70. Viviam-se tempos conturbados no País, o Estado Novo silenciava, castigava, censurava; tempos que a História não esquece, mas que revelou homens vários homens sem medo, muitos deles penitenciados pelo exílio ou pela prisão. Mesmo nessa altura interminável de censura, em que as paredes tinham olhos e ouvidos, o político natural que havia em José Francisco Pereira continuava a trabalhar os seus livros com a mesma frontalidade de sempre. Nesta altura, perigosa frontalidade.

Em 1955 escreve “A Mulher de Amanhã”, uma obra na qual defende que as mulheres deviam ter direitos iguais aos homens na escolha do homem com quem casar. Por amor. Avesso aos casamentos “arranjados” ou à proibição dos pais na escolha dos namoros das filhas, o autor é peremptório: “Deixemo-nos de preconceitos, de infantilidades. A mulher será tanto mais feliz e honesta quanto mais se libertar da excruciante camisa de forças das convenções sociais. Dêem às mulheres os mesmos direitos dos homens, e a humanidade será mais feliz”.

E adianta ainda: “Tudo o que escrevo estriba-se na observação directa, na experiência, na prática de uma longa vida cheia de espinhos. Estes são uma poderosa arma, que mata totalmente a ingenuidade”. As preocupações com os arranjos entre famílias ricas descambavam, muitas vezes, em amores proibidos, em que a rapariga era depois abandonada pelo rapaz e expulsa pela família, tendo, muitas vezes, como destino a prostituição.

Direto, chocasse quem chocasse, também como docente a sua maneira de agir era distinta, incomum. Além de lhe ser reconhecido uma forma de lidar ímpar com os alunos, José Francisco Pereira era justo com eles. Numa época em que a escola primária ainda não era obrigatória, largos anos faltariam até que isso acontecesse, já José Francisco Pereira queria todos os rapazes em idade escolar matriculados, com o aval dos pais. E conseguia-o, meritória e orgulhosamente.

Enquanto espalhava o bem entre as gentes, que já o viam como seu conterrâneo e amigo, publicou, em 1958, “Anjos e Demónios”. Uma vida dedicada às letras, ao ensino, à opinião sem medo, às ações discretas contra um sistema repressivo. Nos tempos livres, além dos poemas que ia escrevendo, gostava de se juntar no café com os amigos, com um “grupo de praticantes de dominó a que pertenciam também Zé Pedro e Faustino de Leomil, Toninho Chapeleiro e Manuel da Costa Lima”. (cit: Gouveia, Jaime- Marte e Minerva). Gostava de uma boa prosa, tendo sempre boas histórias para contar e não dispensava o cigarro, apesar de padecer de bronquite.

Em Moimenta da Beira deixou mais do que o seu trabalho, o seu passado, o seu talento, a sua irreverência, a sua coragem. Aqui teve os seus filhos, aqui deixou saudades. A sua luz. Morreu em 1970 em Coimbra, com 75 anos. Mas em Terras do Demo não foi esquecido. Em 2012, com o apoio da Casa do Povo de Leomil reedita-se o livro “Leomil, Serra de Leomil”, com nótulas históricas sobre o livro e a biografia do autor do historiador Jaime Gouveia, que considera ser esta a sua obra “portadora de mais lustro”.

Recuando no tempo, propositadamente, a obra transversal a toda a sua vida resume o homem que sempre foi. Num livro a que foi dado o título “Os meus Versos Pobrezinhos”, uma coletânea editada pelos filhos, em 2001, está o guerreiro de espada pousada, ainda político, despido do papel social, mas pleno de bondade, avesso à ganância e à maldade, o pai que ama os filhos. Denota-se aqui e ali a pena a discorrer para a solidão, para as dores que nunca demonstrou. O homem que sempre se bateu pela Justiça, escreveu sempre até ao Outono da vida. (FIM)

 

A humildade

Ninguém no mundo queira ser senhor
Sejamos todos muito pequeninos
Que a nossa vida seja a dos meninos,
que só pedem pão e amor.

P´la porta da ambição só entra a dor.
Querer fortuna, mando, altos destinos
é ter na vida loucos desatinos.
Só terá ventura quem humilde for

É nosso guia a Lei da Natureza:
Louros trigais, curvados sobre o chão,
são balas contra a fome e são riqueza.

Soberba, ó mão direita da maldade,
jamais eu te darei minha afeição.
Quero morrer no colo da humanidade.

O bom amigo

Quem tiver um bom amigo
é feliz, tem grande sorte;
e muito deve estimá-lo
sempre, sempre, até à morte.

Maus amigos p´ra que servem?
P´ra nos darem decepções
e desfazer, uma a uma
nossas qu´ridas ilusões.

A verdadeira amizade
é uma grande maravilha
não enferruja c´os anos;
quanto mais velha, mais brilha

Ter de amigos cento e meio
quando estamos na abundância
e em permanente alegria
é coisa sem importância.

É de muito mais apreço
ter na desgraça só um.
Homens há, que em tais apuros,
até ficam sem nenhum!

 

Fontes:
Bibliografia do autor
Jaime Gouveia (Marte e Minerva)
Bento da Guia (As vinte freguesias de Moimenta da Beira)
Testemunhos

mulherdeamanha