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Pedro Veiga: 'Petrus' doa o trabalho de uma vida inteira; falta tratar a sua dádiva como merece (parte II)

03 Abril 2021

Com a sua energia inesgotável e o seu aparente ar desprendido, Pedro Veiga continuou a trabalhar nas suas investigações sobre o trabalho de Fernando Pessoa, mostrando sobre o célebre poeta renovadas perspetivas que, não raras vezes, o levava a confrontos com outros pessoanos. Mantinha a sua editora e continuava a escrever as suas próprias obras.

Entre 1950 e 1960, 'Petrus', o pseudónimo que escolheu para o seu trabalho sobre Pessoa, saíram 82 títulos, sendo que os que o admiraram e estudaram consideram ser o mais raro, aquele em que Pedro Veiga se cruza num mesmo livro com Pessoa. Pedro Veiga e o poeta. Petrus e Pessoa. Mais: a política e a escrita literária. O resultado foi um livro a que deu o título de “Afinidades Políticas, Religiosas e Filosóficas entre Fernando Pessoa e a Renovação Democrática”, editado em 1983.

Nesta obra, Pedro baseia-se na ideia de que o pensamento político de Fernando Pessoa tem importantes afinidades com o Movimento de Renovação Democrática. José Barreto, o historiador e investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, também ele um estudioso de Fernando Pessoa, na apresentação do seu artigo “O fascismo e o salazarismo vistos por Fernando Pessoa”, cita este livro numa apresentação na Universidade da Califórnia, em 2013.

Como já referimos, aliás, na parte I, se havia alguma coisa que despertava a ira neste pessoano de “primeira geração” era a mera suspeição de outros estudiosos de que Pessoa pudesse de algum modo ser fascista. Ou algo que pudesse menorizar um dos “mais altos e originais artistas”. Por esse motivo, vários dos seus confrontos mais conhecidos, sobretudo com Adolfo Casais Monteiro, outro pessoano de renome, com quem chegou a pegar-se, com indiretas em livros e debates acesos, que, por vezes, levavam à frente a própria irmã do poeta, foram por permitir que “certos roedores de livros” emitissem opiniões com as quais não concordava.

Um homem de convicções fortes, que pouco se importava de quebrar regras. Para Petrus, Fernando Pessoa só não fora melhor compreendido no seu tempo devido a pessoas que o leram mal, por ignorância ou más intenções. “Pouco mais de 15 anos depois de ter começado a antologiar Fernando Pessoa, Petrus editou finalmente Almas e Estrelas, em 1966, livro com o qual encerrou o seu labor pessoano. Ali, coligiu sete textos de Pessoa, de “O Marinheiro” a “O Banqueiro Anarquista”, passando por “O Conto do Vigário” e até o menosprezado articulado publicitário de “O automóvel ia desaparecendo”. Com este livro, Petrus terminaria a tarefa assumida de “revelar, ao mundo intelectual, uma obra de pensamento e poesia ignorada, abandonada, fragmentária mas, mesmo assim, de raro quilate e de rara significação como testemunho do nosso tempo” (in Petrus, o Mais Excêntrico dos Pessoanos, Morais, Ricardo Belo).

Uma obra bem reveladora do seu espírito rebelde data de 1961 e chama-se: “O Sr. Adolfo Casais e os modernistas portugueses... mais uma perfídia do pueta (sic) da confusão”. Quanto às suas próprias obras são inúmeras, porque as de Pessoa correu-as de fio a pavio, incluindo as escritas em prosa e até a censurada “Defesa da Maçonaria” e o artigo incluso “Associações Secretas”. Pedro Veiga deixou títulos como a “Hora Universal dos Portugueses”, “Doutrinal da Geração Moça", em 1932, entre diversas obras sobre Direito, Política, Cultura, Arte, Economia, muitas das quais já mencionámos.

A dada altura, quiseram fazê-lo comendador da cultura. A sua reação não foi de espantar. Torceu o nariz, posteriormente acedeu, referindo: “Está bem, mando o cão”. Ainda assim, Petrus decidiu doar a sua portentosa biblioteca à Universidade do Porto. Um tesouro autêntico. Mas as coisas não lhe correram como queria. Segundo recordou o sobrinho, Miguel Veiga numa entrevista a Anabela Mota Ribeiro, que já nos serviu de referência várias vezes, o tio terá dito que lhe “lixaram os livros todos”. E em 1977, Pedro Veiga escreve: “A destruição da cultura na Universidade do Porto depois do 25 de Abril”.

O espólio era-lhe caro. Era o trabalho de uma vida inteiro. “É uma panada dos diabos. O tempo passou e a Faculdade de Letras começou a tratar os livros, perto de 20 mil. Fui lá, à Sala Pedro Veiga, quando foi a inauguração”, referiu o sobrinho, também ele já falecido. Mas Petrus deixou muito mais, incluindo à Faculdade de Direito. Manuscritos por editar. Deixou ainda textos suficientes para oito livros de memórias literárias e políticas. As doações foram feitas por volta de 1970. Em que ponto estará o tratamento dos livros editados. E dos não editados? A Biblioteca Municipal do Porto está a começar a trabalhar nesse objetivo. Em qual deles?

Os admiradores, seguidores e pessoanos como Petrus dizem-no esquecido no país, sobretudo pela cidade onde viveu, a quem só foi dado o nome de uma rua. Como sempre, os mais “brilhantes” não parecem merecer uma homenagem, dizem. Moimenta da Beira também tem uma rua com o seu nome. Desde a sua morte, em 1987, com 77 anos, a terra onde nasceu já lhe fez referência várias vezes. Ao génio com uma fonte inesgotável de vida. Uma inspiração.

Fim.

Fontes:
Biblioteca Nacional de Portugal
Biblioteca Municipal do Porto
Câmara Municipal do Porto
https://ruasdoporto.blogspot.com/2013/04/rua-pedro-veiga.html
Entrevista de Miguel Veiga a Anabela Mota Ribeiro
http://anabelamotaribeiro.pt/76431.html
www.casafernandopessoa.pt
Morais, Ricardo Belo de, “Petrus, o mais Excêntrico dos Pessoanos”, artigo Universidade de Coimbra

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