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Luís Veiga: Advogado, cosmopolita, de inequívoco sangue da Beira

05 Março 2021

Luís Veiga nasceu em Moimenta da Beira, a 25 de Março de 1904, filho de Pedro Leitão Veiga e Maria do Carmo Crescente Veiga, cujo apelido, por mais tentativas, não é percetível na sua certidão de batismo. Viveu a sua infância junto de pais e avós, mas quando chegou a hora de se tornar homem e profissional, foi nas Universidades de Coimbra e Lisboa que se formou em Direito, em 1925. No entanto, o Porto foi a sua cidade de eleição para viver e exercer a sua profissão.

Foi também em 1925 que editou o seu livro Bardos e Cavaleiros, aos 21 anos, uma obra que dedicou à mãe e que surpreendeu pelo seu conteúdo imaginário de castelos e donzelas em tempos medievais, com contos poéticos que, além de apreciados pela crítica, receberam rasgados elogios do prefaciador, o já então reconhecido escritor Júlio Brandão. “Quem ler os contos deste livro claramente verá que o autor é um poeta, que preferiu enquadrar em prosa colorida e rítmica as abaladas em que a imaginação se alteia por velhas lendas de amor”, escreveu.

Outras questões se impuseram: “Mas para o autor deste livro, em plena mocidade, e sob a chuva de estrelas que lhes alumiam a estrada, qual é o motivo que o impele para essa preferência de pinturas remotas, a ponto de que em nenhum dos seus contos retrata personagens contemporâneas nem esfuma cenários ambientes?”. Júlio Brandão acredita que tais “ressurreições poetizadas”, para além de um “romantismo evidente” denotam uma “fuga da atmosfera asfixiante” que a Grande Guerra causou.

A vida de Luís Veiga provou essa suspeição. As almas poéticas têm tendência para se isolar do “circo vertiginosamente mercantil inestético que as esmaga”, sublinhou Brandão. De facto, o jovem criador de “Bardos e Cavaleiros” terá sido sempre um esteta, pela vida fora um homem de requinte mas de valores férreos, consciente da estrada e das ciladas que abominava. Estabeleceu-se como advogado e cresceu como profissional. Ficou-lhe no currículo o facto de ter sido um dos signatários do Manifesto da Revolução Democrática e apoiante da candidatura de Norton de Matos à presidência da República, num movimento contra a ditadura nacional.

Em 1953, foi proposto como candidato da Oposição para a Assembleia Nacional. Colaborou em várias revistas literárias, no Primeiro de Janeiro e na Biblioteca Nacional há inúmeros artigos jurídicos da sua autoria, incluindo a tese apresentada no Congresso de Automobilismo e Aviação Civil, onde propôs a criação de um seguro obrigatório. Por responder fica onde param os livros que constam da contracapa do “Bardos e Cavaleiros” como “no prelo” e “a concluir”: “Yolanda” (novela dramática), “Dona Guiomar” (vinheta dramática) e “Breviário Estranho”.

Aos 30 anos, era dos poucos portugueses a andar de carro. Numa das suas viagens de férias a França, apaixonou-se em Paris. Dois anos depois, casava-se na cidade das luzes, de onde trouxe a mulher da sua vida, que se adaptou com facilidade à vida em Portugal e às caraterísticas únicas de um Porto com os seus regionalismos únicos e o seu cosmopolitismo a germinar. Tiveram um único filho, em 1936, Miguel, de quem mais tarde falaremos nesta rubrica, mas cujas palavras aproveitamos de excertos de várias entrevistas para tecer o caráter do pai. “Um beirão dos quatro costados, de Moimenta da Beira, das cercanias das terras do Demo”.

Neste Universo de afetos e admirações, Miguel via no pai um homem exigente que lhe ensinou, citando Abel Salazar que “um advogado que só sabe Direito nem de Direito sabe”. Luís Veiga era um homem culto, um leitor compulsivo, tal como o irmão Pedro Veiga, seis anos mais novo, o fascinante Petrus, furacão da família, escritor de renome, indomável, também nascido em Moimenta e para quem temos igualmente páginas à parte para escrever. Uma família ligada às letras - “o pai escrevia primorosamente”, palavras do filho - à cultura, à política, com as suas pequenas excentricidades encaixadas num bloco sólido de humanismo e humildade.

Uma das curiosidades de Luís Veiga tinha a ver com a forma como comunicava com a esposa: ela falava-lhe em português, ele respondia-lhe em francês. Ela apaixonou-se por Portugal, ele gostava mais de Paris. Em casa baralhava-se tudo. Culturas e modos de estar. A mãe pragmática, o pai poético. Extremamente bem educado, no entanto intransigente e com uns toques de autoridade em alguns aspetos.

Um exemplo: receando que o filho se transformasse num menino da Foz, mandou-o, no Pós-Guerra, para um colégio inglês, em Brighton, tinha ele 13 anos. A ideia era que aprendesse a liberdade e a independência e que se afastasse o mais possível de qualquer conceito ditatorial. Valores que contrariavam a sua alma democrata e que lhe eram essenciais. “Saber separar águas. Não é procurar inimigos, é saber quem somos e por onde devemos ir”.

Miguel Veiga disse um dia que a costela beirã esteve presente no seu caráter de Luís Veiga, em alguns traços. “O beirão é um sujeito de grande dignidade, retidão, compostura e de uma certa agressividade civilizada”. O pai era um dois em um. O restante foi um produto da vida, da socialização, das vivências. “O meu pai fez a sua vida toda no Porto, mas foi sempre um cosmopolita e um esteta. Tanto assim que casou com uma parisiense”.

Luís Veiga era a referência do filho, apesar de Miguel nunca ter vivido na sombra do seu nome. A sua morte em Abril de 1981, bem como a da mãe não lhe deixaram um vazio afetivo, muito pelo contrário, encheram-lhe o peito de infância e de um amor que andou com ele pela mão, devoção reveladora dos seres de exceção que foram.

Nota: Este autor não terá uma parte II.

Fontes:
Bento da Guia, A (As Vinte Freguesias de Moimenta da Beira)
Entrevista de Miguel Veiga ao Semanário Expresso
Entrevista de Miguel Veiga ao Público
Texto autobiográfico de Miguel Veiga no Jornal de Letras
Entrevista de Miguel Veiga a Anabela Mota Ribeiro

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