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Um texto novelístico de Aquilino Ribeiro que cita Aldeia de Nacomba

23 Fevereiro 2018
Em “Caminhos Errados”, livro de novelas/contos que Aquilino Ribeiro escreveu e publicou em 1947, encontra-se, a páginas tantas, um belíssimo texto da vida ‘desgraçada’ de dois irmãos invisuais de Aldeia de Nacomba, um povoado à beira de Moimenta da Beira. O retrato que o mestre traça dos irmãos gémeos “e feridos desde nascença de gota serena, (que) iam de povo em povo cantando e tocando, ele rabeca, ela violão”, vale não apenas pela suprema valia literária de Aquilino, aqui confirmada, mas também pela incursão geográfica que, neste excerto novelístico, faz às portas da vila de Moimenta. É que o foco da obra do mestre, mesmo aquela autobiográfica, anda quase sempre lá pelo cimo da serra, muito raramente desce às suas faldas.

O conto, ou um excerto dele, vem no capítulo intitulado “Salamaleque” e começa assim: “Dos nove aos onze anos, o José Pais foi moço de cego. Sua mãe, que estava carregada de filhos e não tinha um palmo de terra onde cair morta, dera-o por uma malga de feijões para os dois manos da Aldeia de Nacomba, que andavam no peditório. Aprendeu a moina... e disse. Eram uma gente cainha de todo, dobrados sobre a própria miséria, tão futres que, tantos dias que passou com eles, nem uma carapuça lhe compraram.

Gémeos e feridos desde nascença de gota serena, iam de povo em povo cantando e tocando, ele rabeca, ela violão. Armavam nos largos e à boqueira dos pátios a zanguizarra, e recolhendo o cinco reizinhos aqui, o coirato acolá, uma côdea nesta porta, duas cebolas naquela, lá iam acalentando os dias.

O José Pais carregava com o bornal e guiava-os pelos tortuosos caminhos de Cristo, tendo cuidado que não tropeçassem nas pedras ou metessem os pés nos charcos. Marchavam em bicha como se fossem engatados: o moço na dianteira, descalço e roto; o cego, de tabardo de burel, a mão no ombro do moço; a cega, de vasquinha escarlata, a mão no ombro do irmão e instrumento para as costas, tal o escudo dum peltasta.

No estio esta vida airada não era a pior de todas. Sempre havia que imolar, pomos e cachos em suspensão dos taludes, o fundo das caçoilas a varrer pelas malhadas e os restos dos farnéis pelas romarias. O José Pais, sacudido para fora do regaço materno superpovoado, como sucede nos ninhos de certas aves quando os filhos são muitos, tirava o ventre de misérias. A melhor bocada, de resto, ia ao direito para o fole do gato, que ali era ele, o lazarilho, tão ágil de garra como ladino de olho.

— Que deram em casa da senhora Micas brasileira? — perguntava o cego.
— Duas dentadas de broa tão rijas que só o Diabo as pode tragar.
— Deixa ver, menino...

O José Pais afundia a mão no taleigo e, como lá houvesse de tudo, apartando o pão fresco e folhado, arrancava o pedaço mais bolorento e empedernido.
— Já não há caridade! — gemia o velho.

Rodando para outra porta, não cessava de rosnar:
— Quanto mais santanários, mais fonas. Se Cristo tornasse a este mundo, morria de larica!

Pernoitavam a talhe de mão, umas vezes nos cabanais quentes dos poviléus, outras vezes, surpreendidos pelo temporal, nas cortes da serra de mistura com o gado. Altas horas, o José Pais erguia-se do grabato, muito sorrateiro, e a rastos como a jiboia chegava-se às cabras.

Assim que palpava um úbero bem repleto, punha-lhe os beiços e sugava, sugava até à última gota. Depois desse, outro. Voltava à cama refarto, a cheirar-se ele próprio a menino de mama, pesadão, para mergulhar numa soneira de que só acordava aos safanões.

Os cegos sabiam trovas de todo o género, umas que faziam rir, outras chorar. Cantavam o rimance do sapateiro que fora entregar a obra aos fregueses e à volta apanhara a mulher a cear com um frade, e as bocas escancaravam-se até às orelhas e as risadas caíam das queixadas, estrepitosas como espadanas em cima do linho. Mas lá vinha a história do filho a quem a amiga pediu o coração da mãe, se queria dormir com ela, e os olhos vidravam-se de lágrimas.

O José Pais gostava pouco daquelas cantorias. A voz dos dois cegos, como se fizesse coro com as órbitas revolcando-se brancas, vazias e absurdas nas capelas ramelosas, soava a outro mundo. Parecia-lhe ouvir o acompanhamento dos defuntos no traço da porta dos cemitérios. Tinha também a plangência dos ralos que cantam de noite debaixo da terra. Estava morto por despegar.

Um dia, o cego apanhou-o enliçado no sono e passou-lhe revista aos bolsos. No fundo da algibeira das calças, dentro dum trapo, encontrou-lhe o tesoiro, dinheiro escamoteado moeda a moeda, desde o primeiro dia. Enquanto o sujeitava contra o solo com a mão esquerda, com a direita zurziu, zurziu sem dó nem piedade. A cega, em vez de lhe valer, açulava o algoz:
— Mata, mata-me esse ladrão!

No mesmo dia abalou. Estava farto da bordoada, daquela macarena azarenta, dos padre-nossos dos cegos entremeados de pragas: oxalá que vos caia a casa em cima e vos esborrache a todos! Que ainda hoje comam lume no inferno! da vida de cão, umas vezes molhado até o umbigo, outras a estorricar com a soalheira.

Pois que a mãe o não queria em casa — todas as tetas duma porca não chegavam para os irmãos, cada um de seu pai — foi procurar amo.

Ajustou-se na azenha dum moleiro que tinha fama de mau e ladrão”.